Público e privado, fundações e afins

Francisco Mogadouro da Cunha

Escrevo para tentar compartilhar o que aprendi sobre alguns conceitos dessas tais “modalidades de gestão”, principalmente ao longo do tempo que passei no Conselho Nacional de Saúde (CNS), afinal, cheguei lá bem no auge da discussão da Fundação Estatal. É claro que também sou leigo no assunto, então não vou aprofundar muito nem tenho a pretensão de ser tecnicamente preciso. A proposta é passar a idéia geral de cada uma das possibilidades.
Antes de entrar nas “modalidades de gestão” (administração direta, autarquia, fundações de todos os tipos, organizações sociais etc), precisamos ter clareza de algumas distinções. A mais importante é entre público e privado e, conseqüentemente, entre “direito público” e “direito privado”.
Falando em termos conceituais, vamos chamar de “público” aquilo que pertence ao Estado e “privado” aquilo que pertence a uma ou mais pessoas, ou seja, aquilo que não pertence ao Estado. Não vamos entrar (por enquanto) no mérito do tal “interesse público”. Estamos falando apenas de “propriedade”, ou seja, “a quem pertence” uma certa instituição.
Nesse sentido, alguns exemplos da nossa realidade: um centro de saúde em Campinas é um equipamento público, pois pertence à Prefeitura, que integra a estrutura do Estado. O mesmo ocorre com a Unicamp, que é uma autarquia estadual, portanto integrante do governo estadual.
Indo para o outro extremo: a Única e a Gocil, que prestam serviço terceirizado de limpeza e Segurança, respectivamente, para a Prefeitura são empresas privadas, ou seja, têm um determinado número de sócios, que são seus donos. Elas não pertencem à estrutura do Estado, apenas são contratadas por ele para prestar esses serviços (e lucrar muito em cima disso, com certeza).
Já o Cândido Ferreira, embora “100% SUS”, é uma entidade privada, ou seja, não pertence ao Estado, e sim a uma pessoa jurídica privada chamada “Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira”, que nada mais é que uma associação. Uma associação é basicamente um grupo de pessoas que se reuniram, criaram um estatuto e elegeram uma diretoria, constituindo assim uma pessoa jurídica privada. O Cândido não tem fins lucrativos, ou seja, não tem “donos” que possam decidir como bem entenderem o destino do patrimônio da entidade. O mesmo vale para uma Santa Casa e mesmo para a maioria dos hospitais que se dizem “filantrópicos”, que em tese não são empresas lucrativas.
Depois dessa distinção entre “público” e “privado” em termos da natureza da instituição (órgão público, empresa privada, entidade privada sem fins lucrativos), uma outra questão importante é a diferença entre “direito público” e “direito privado”.
Orgãos públicos têm (em tese, em um mundo ideal) a obrigação de promover o “bem comum” da sociedade, seja lá o que isso for. É claro que os interesses de diferentes classes e setores sociais são muito distintos e que o Estado tende a agradar os poderosos e no máximo acalmar os demais, mas esse não é o foco agora. Estamos falando do plano teórico.
Se o Estado tem como função o bem comum, a coletividade, ele precisa seguir certas regras para minimamente tentar atingir esse objetivo. Afinal, em um regime democrático/republicano, não devem prevalecer os interesses privados dos governantes, por maiores que sejam as tentações deles. Assim, existe o tal Direito Público, que é o conjunto de regras (previstas na constituição, leis, decretos etc) que os governantes são obrigados a seguir. Mais ainda: um governante (ou gestor público) não pode fazer aquilo que não seja autorizado pela lei.
Os entes privados (pessoas físicas, empresas, associações etc) também têm regras sociais que precisam ser seguidas. Mas existe uma diferença fundamental: o privado não tem a obrigação de servir ao interesse público, como o Estado tem. Assim, o Direito Privado é muito diferente do Direito Público, já que precisa apenas proibir aquilo que nós não podemos fazer.
Resumindo: o Estado, regido pelo Direito Público, só pode fazer aquilo que for autorizado pelas leis. Já os entes privados, regidos pelo Direito Privado, podem fazer tudo aquilo que não for proibido por lei.
Sim, é abstrato. Alguns exemplos concretos: pelas normas do Direito Público, o prefeito de Campinas não pode contratar a empresa que ele quiser para prestar serviços para a Prefeitura. Ele é obrigado a fazer um processo de licitação, que tem como objetivo (em tese!) selecionar a proposta que for melhor e mais barata. Da mesma forma, ele não pode contratar como servidor público o profissional que ele bem entender. É obrigatório fazer concurso para selecionar (em tese!) com critérios justos.
Já o Cândido, a Santa Casa ou uma empresa privada, por seguirem o Direito Privado, podem fazer suas contratações (de empresas ou de trabalhadores) como bem entenderem, desde que não cometam nenhum crime ou desrespeito aos direitos trabalhistas. Ou seja, as normas proíbem algumas coisas, mas deixam ampla margem para o ente privado decidir como bem entender. Isso resulta em uma flexibilidade muito maior nos processos, mas também em garantias ainda menores de que o tal do “interesse público” seja respeitado.
Saindo um pouco do “mundo ideal” agora, vamos pensar no Estado brasileiro atual, tentando chegar nos dilemas do SUS.
A Constituição de 1988 trouxe ao Estado algumas responsabilidades novas. Talvez as mais relevantes sejam a universalização da saúde e da educação, de inspiração social-democrata ou até socialista (para alguns mais otimistas). Por outro lado, nunca houve estrutura apropriada para essa “prestação de serviços”, menos ainda depois dos anos 1990 e o desmonte neoliberal do que restava de Estado. Isso sem falar das questões de classe que permeiam o Estado brasileiro, que merecem um debate específico.
Assim, a criação e expansão do SUS (regulamentado em 1990) se deu nesse cenário bastante desfavorável. Um dos maiores entraves é a política de força de trabalho (ou recursos humanos): os entes públicos, principalmente as prefeituras, contrataram muitos trabalhadores sem ter recursos financeiros nem mecanismos de gestão adequados para isso. O mesmo problema se repete em outras questões, como a gestão de insumos, logística etc.
O resultado é isso que nós vemos agora, vinte anos depois da Constituição: um sistema desacreditado, muito longe de competir com o setor privado “complementar” (vale lembrar que em Campinas 55% dos habitantes têm plano de saúde), com trabalhadores mal remunerados e com uma gestão que varia do autoritário ao “excessivamente solto” (médicos não cumprem horário, trabalhadores não são acolhedores e ninguém está nem aí para isso).
Para completar, veio a tal Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que apesar do nome bonito tem uma consequência nada “responsável”: por causa dessa lei, os municípios só podem gastar com pessoal (salários, benefícios, encargos e afins) até 54% de sua arrecadação anual. Assim, é inviável que os municípios expandam seu quadro de servidores sem sofrer sanções que podem até penalizar individualmente o prefeito.
Diante desse cenário, surgem muitas propostas de “flexibilizar” a gestão do Estado (e do SUS), sempre com o argumento de “melhorar a qualidade dos serviços” e alguns deles com o propósito de “burlar” as amarras da LRF. São muitas as possibilidades, então vou tentar falar superficialmente das mais comuns.
Dentro da própria máquina estatal, existe a Administração Direta (em Campinas: o gabinete do prefeito, as secretarias municipais e órgãos subordinados, além da Câmara Municipal) e a Administração Indireta, que são as autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista. Aqui em Campinas temos alguns exemplos: Emdec (sociedade de economia mista), Fumec (fundação municipal), Sanasa (sociedade de economia mista) e o Mário Gatti (autarquia). Não cabe aqui falar das diferenças entre esses tipos, mas em linhas gerais são órgãos públicos (ainda que alguns com participação privada) que têm uma maior autonomia com relação à administração direta. Por exemplo, o Mário Gatti deve ter uma Comissão de Licitação própria, independente da Prefeitura, o que pode garantir maior agilidade nos processos.
Também existem órgãos “públicos” que são geridos por entidades que a rigor são “privadas”. Sim, é paradoxal mesmo. São verdadeiras “gambiarras” políticas/jurídicas de vários tipos e várias intencionalidades. Vou citar alguns exemplos:
O nosso “querido” Hospital Ouro Verde é um hospital público, certo? Não, mais ou menos. O terreno e o prédio são públicos, pertencem à Prefeitura de Campinas. O atendimento é público, 100% SUS. Mas quem administra o hospital? Quem contrata e faz a gestão dos trabalhadores? Quem compra os insumos e terceiriza serviços? A Unifesp? Não, a SPDM. E quem é a SPDM? É a “Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina” (antigamente Sociedade, por isso o S). Ou seja, é uma entidade privada (associação de professores) intimamente ligada à universidade pública.
Além de ser reconhecida como filantrópica, a SPDM conseguiu se qualificar junto ao governo estadual (entre outros) para administrar Organizações Sociais de Saúde (OS). O que é isso? São justamente os hospitais (ou outros serviços) “híbridos” como o nosso Ouro Verde: pertencem ao poder público, mas quem administra não é o gestor municipal, e quem trabalha lá não são servidores municipais. Assim a Prefeitura não está contratando “pessoal”, e sim um “prestador de serviços” (SPDM), escapando do tal teto de 54%.
Além das OS, uma forma semelhante são as OSCIP – Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público. Não sei explicar direito as diferenças entre OS e OSCIP, mas na prática elas são muito parecidas. A essência é a mesma: um ente privado, não gerido pelo poder público, cujos trabalhadores não são servidores públicos. E que assume serviços públicos de forma terceirizada, sem as normas do Direito Público.
Uma das mais recentes propostas para essa questão é a tal Fundação Estatal de Direito Privado (FEDP). A proposta surgiu originalmente no Ministério do Planejamento, como resposta à crise dos hospitais federais que ainda existem no Rio de Janeiro e também para os hospitais universitários em geral. Logo foi adotada por outros setores, em especial gestores da saúde nas diversas esferas. O exemplo que mais chama a atenção é a Secretaria Estadual de Saúde da Bahia, que propôs a tal Fundação Estatal Saúde da Família, para incentivar a estruturação da Atenção Básica na “terra arrasada” pós-ACM.
O que é afinal a FEDP? É mais uma solução “híbrida” entre público e privado, tentando manter o que há de “melhor” (na visão de seus formuladores) de cada um dos lados. Para começar: ela pertence ao Estado, em termos patrimoniais. Não é um ente privado como o Cândido, a SPDM ou uma Santa Casa são. Não é exatamente a mesma coisa que as famigeradas “fundações de apoio” das universidades, que em geral são entes privados que usam a “grife” da universidade para arrecadar dinheiro e distribuir a uns poucos docentes.
Qual é a novidade com a FEDP então? É que ela pertence ao Estado, mas tem personalidade juridica de direito privado, ou seja, é uma “gambiarra” que permite que ela seja vista pelo Estado como um terceiro. Assim, no orçamento público ela aparece como se fosse mais um prestador de serviços terceirizado e, portanto, escapa do limite da Lei de Responsabilidade Fiscal. Esse é um dos principais argumentos “pela esquerda” em defesa da FEDP, no sentido de que “já que não temos conjuntura para enfrentar a LRF achamos um jeito de burlar para implantar o SUS”.
Outra questão fundamental é que a FEDP tem seus trabalhadores contratados por concurso público (obrigatório por ela ser estatal), mas regidos pela CLT, típica do setor privado. Assim, deixa de existir o servidor público com estabilidade (que já não é mais absoluta desde os anos FHC) e passa a existir um empregado não estável, sujeito a demissão de forma mais simples. Outra conseqüência disso é que os trabalhadores deixam de ter o plano de previdência do serviço público e passam ao Regime Geral de Previdência Social (INSS), como os demais trabalhadores do setor privado. Mais ainda: deixam de existir diversos direitos conquistados pelos servidores, como as licenças-prêmio, faltas abonadas e afins.
Indo um pouco além: há quem defenda que a FEDP possa vender serviços no mercado, de forma que ela não se limite a atender às demandas do Estado. É uma brecha perigosa para questões como a “dupla porta”, que já é regra em muitos hospitais “públicos” por ai, começando pelo HC da USP-São Paulo (que faz isso via fundações de apoio).

Francisco Mogadouro da Cunha é Médico de Família e Comunidade no Centro de Saúde DIC III, diretor de Comunicação do Sindimed e membro da Comissão Executiva do Cebes Campinas.

8 Respostas

  1. Boa noite! Muito interessante esse artigo, porém, um funcionário contratado pelo candido sem processo seletivo trará um funcionário que será pago com recursos do sus, certo? E trabalhando na mesma função e entidade de um concursado no mesmo horário tem salário e direitos diferentes, por exemplo, no Mario Gatti a enfermagem da prefeitura (concursados) tem mais folgas do que os contratados, exercendo exatamente a mesma funçao, se um funcionário se aposentar pelo candido ele não pode requerer seus direitos dessa “diferença” na justiça????

  2. Muito interessante esse artigo, porém, um funcionário contratado pelo candido sem processo seletivo trará um funcionário que será pago com recursos do sus, certo? E trabalhando na mesma função e entidade de um concursado no mesmo horário tem salário e direitos diferentes, por exemplo, no Mario Gatti a enfermagem da prefeitura (concursados) tem mais folgas do que os contratados, exercendo exatamente a mesma funçao, se um funcionário se aposentar pelo candido ele não pode requerer seus direitos dessa “diferença” na justiça????

  3. Capitão e pessoal do CMS:

    Obrigado por publicar esse meu texto.

    Acrescento apenas que a opinião expressada é estritamente pessoal.

    Embora eu assine como membro do CEBES Campinas e do Sindimed, não necessariamente essas entidades têm a mesma posição que eu sobre o tema.

    Abraço!
    Chicão

  4. O artigo é didático e esclarecedor, se não fosse de forma injusta a separação entre médicos e trabalhadores “médicos não cumprem horário e trabalhadores não são acolhedores e ninguém ta nem ai”. Ora, médicos não são trabalhadores? Existem médicos e outros? Enfim somos todos trabalhadores, a população e os trabalhadores sofrem do mesmo problema (ingerência, uso inadequado do dinheiro público, serviços sucateados, falta de estrutura e recursos para trabalhar, entraves burocraticos e ideológicos, entre outros. Então, neste cenário, como os trabalhadores poderão ser acolhedores? Acolher para que e fazer o que……..

  5. otimo! Arrasoooooooooooooooooooooooooooooooooooooou

  6. ñ gostei está orroroso!teeeeeeeeeeeeeeeente fazer um melhoooooooooooooooor okkkkkkkkkkkkkkkk

  7. MUITO BOM O ARTIGO MESMO SENDO DE CUNHO PESSOAL ,MORALMENTE ESTA PERFEITO. ESTAS FUNDAÇOES TEM COMO ÚNICO OBJETIVO LIVRAR A CARA DOS MAUS PREFEITOS QUE NÃO TENHAM COMPETÊCIA PARA GERENCIAR A COISA PUBLICA.
    TODO POLITICO ‘picareta’PARTE PARA ESTE EXPEDIENTE QUANDO NÃO CONSEGUE MANTER AS CONTAS DOS SEUS MUNICIPIOS EM DIA .PRIMEIRO PASSO TIRAR DIREITOS ADQUIRIDOS DOS SERVIDORES DAS AREAS DA SAÚDE………..

  8. Obrigada pela publicação da matéria que de forma didática consegue ser esclarecedora, embora seja o direito e uso que se faz bem complexo, como os colegas também acrescentaram.
    Gostaria de saber se na coexistencia de dois tipos de vínculos: servidor público e contratado pela organização social, pode o servidor ser removido do serviço sob a alegação que a administração está acima dos direitos particulares. Detalhe: o contratado ficou na incubencia de realizar as mesmas funções que o servidor já desenvolvia muito bem. Para o servidor removido ficou mais longe o acesso casa-trabalho, mudanças de rotinas e contexto e estava motivado no trabalho desenvolvido.Então deve se aceitar simplesmente a remoção? O que pode ser feito?
    Agradeço desde já a atenção
    aguardo retorno
    abraço, Francisco

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